I
A
cena era insólita e muito engraçada. Porém, muito bonita. Ela estava em pé,
diante da poltrona, com os pés ligeiramente afastados. Ele estava ajoelhado
diante dela, com a cabeça entre seus pés e a testa encostada no chão. Parecia
um muçulmano orando. Era o que ele parecia estar fazendo. Mas não orava para
nenhum Deus. Estava em adoração e profunda veneração.É certo que estava. Só que
diante de um outro tipo de totem. Aliás, uma escultura. Um monumento ao
sagrado-profano. Ficou ali, imóvel, por muitos minutos. Balbuciava algumas
coisas desconexas, mas que ela parecia entender. Ele parecia suplicar algo. E
pedia perdão. Chorou muito. Somente quando ela disse “ok” ele movimento a
cabeça e pôs-se a beijar os pés dela.
Primeiro o pé direito. Ele beijou muito e, a cada beijo, repetia sem
parar... “obrigado, obrigado, obrigado...” Depois o outro pé. Beijou de forma
incontrolável, até que ela o mandou parar, dizendo “chega”. Ele parou e colocou
a testa no chão novamente. Entre os pés dela. E ficou imóvel. Foi possível
notar que o rosto dele estava vermelho. Ele molhou os pés dela com suas
lágrimas. Foi bonito. Parecia lavar os pés de uma Santa com suas próprias
lágrimas, em gratidão após o acontecimento de um milagre.
II
Os pés não eram bonitos nem
feios. Eram pés comuns, fortes. Pés de gente que trabalha duro, que caminha
muito, que tem – nos pés, a força de transporte. Eram pés negros, como ela. O
dorso negro, com os dedos bem definidos e marcados por pequenas calosidades nas
juntas que os faziam parecer maiores do que realmente eram. As solas clarinhas,
quase brancas, rosadas nas bordas quando depositados no chão e sob o peso do
corpo. Pés assim não são pés próprios para propagandas de sandálias. Mas eles
eram, ali, um pedestal de sustentação de uma obra-prima. Eram a base de um
altar sagrado que trazia envolto na pureza da cena o resgate de uma longa
história. A alva pele dele era um contraste com a dela. O que se via ali era
uma pele branca suplicando algum tipo de perdão, como um acerto de contas no
final do resumo de séculos de vilipêndios. Era um monte de carne masculina e branca
a pedir algo à uma mulher e negra. As duas extremidades da injusta pirâmide. O
insólito era que, agora, o topo estava na base e a base... no topo.
III
Finalmente ela sentou na poltrona.
Primeiro cruzou as pernas e, depois, deixou o pé esquerdo no chão, próximo ao
rosto dele. O pé direito ela depositou sobre o pescoço dele, que – agora, não
mais estava ajoelhado, mas completamente deitado no chão, sempre com a testa
voltada para baixo. Ela secou a umidade
das lágrimas dele no dorso dos seus pés negros, nos cabelos dele. Sem muitas
palavras ela agora o tinha em completo domínio. Ele estava cativo, em absoluta
submissão. Ela era uma Rainha Kushita. Única! Era a Rainha de Sabá que dobrou
os joelhos do poderoso Rei Salomão e o fez colocar sua testa no chão entre os
pés dela implorando para que ela fizesse verter sangue de suas costas, em
noites de luxúria, com intenso látego e açoites. O olhar dela era distante. Olhava para baixo
– num misto de carinho e satisfação, por alguns instantes. E logo olhava ao
longe, no horizonte. Como se estivesse ouvindo na voz dos séculos o tamanho da
sua glória. Nada se pode comparar a tão completo desprendimento. A paixão e o
amor em sintonia são capazes da produzir cenas sem nenhuma vergonha e de grande
pureza.
IV
Por vezes, ela pressionava o
pescoço dele com o pé, enquanto proferia suas exigências e condições. Ele só
conseguia pronunciar “sim, sim, sim...” ou “perdão, perdão, perdão...” Notava-se
que o acerto de contas era antigo. Séculos de opressão e desigualdade. O corpo
dele sob os pés dela tremia todo. Ele não tinha medo...tinha pavor. Depois de
algum tempo, ela permitiu eu ele erguesse a cabeça e fitou-o direto nos olhos.
Os olhos dela eram faiscantes, firmes e amedrontadores. O olhar dele era fraco,
lacrimejante e servil. Ela o apontou com o dedo enquanto falava. Depois, ele
baixou a cabeça e tornou a beijar os pés dela. Religiosamente, com devoção,
beijou aqueles poderosos pés negros. Ela fitava ao longe e seu olhar parecia
dizer que pouca misericórdia haveria naquele acerto de contas. A piedade mínima
seria o tom do futuro naquela nova pirâmide.
texto lindo!! me emocionei! obrigada...precisava disso!
ResponderExcluirquem é ?
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