25/10/2009

Teus Pés - Pablo Neruda

Madrugada de 24/10/2009 - Rainha 'X'!!!
"Quando não posso contemplar teu rosto,
contemplo os teus pés.
Teus pés de osso arqueado,
teus pequenos pés duros.
Eu sei que te sustentam
e que teu doce peso
sobre eles se ergue.
Tua cintura e teus seios,
a duplicada púrpura
dos teus mamilos,
a caixa dos teus olhos
que há pouco levantaram vôo,
a larga boca de fruta,
tua rubra cabeleira,
pequena torre minha.
Mas se amo os teus pés
é só porque andaram
sobre a terra e sobre
o vento e sobre a água,
até me encontrarem."


25/10/2009, pés de Rainha 'X'!!!: arte sobre papel.

18/10/2009

Conto: Pedro e o Amor

Pedro e o Amor
Contribuição de Gebara, O Tuareg

Pedro conheceu Helena num vôo entre São Paulo e Porto Alegre. Ele retornava para casa após uns dias de trabalho na ‘terra da garoa’. Ela viajava a Porto Alegre a trabalho. A conversa entre os dois iniciou quando ela tirou os scarpin para descansar os pés. Sentados na primeira fila da classe executiva, ele foi incapaz de conter os elogios, hipnotizado pelos pés daquela executiva de uma poderosa indústria de cosméticos, bem vestida dentro de um tailleur azul marinho e blusa preta, num corpo esguio, sustentado por longas e torneadas pernas abrigadas dentro de comportadas meias escuras e decoradas por um alto e lindo par de sapatos pontudos e elegantes.

Passados sete anos de encontros mensais, sempre em Porto Alegre, ele continuava a sentir o mesmo frio na espinha da primeira vez. O ritual era sempre o mesmo. Uma semana antes da chegada dela, recolhia uma carta numa caixa postal da agência central dos correios. Uma única e curta frase: - Varig 180, dia tal, hora tal. Era a senha para uma semana de sonhos e delírios. Deixava-se levar pelos pensamentos à medida que se aproximava o melhor momento de sua vida, como gostava de afirmar para si mesmo. Muitas vezes era flagrado distraído em casa, ou no trabalho, com o pensamento longe, em sonhos adolescentes. Derramava café, imaginando o orgasmo dela. Algo selvagem, que ele nunca tinha visto. Sempre ao vê-la gozar daquela forma ele sentia seu rosto ruborizar e não conseguia conter suas próprias lágrimas, feliz com o inexplicável. Seu corpo ardia e, junto ao dela, misturavam suores e odores, entre beijos e sacanagens.

Seu longo ritual da semana já virara rotina. Uma adorável e excitante rotina. Muito longe dos dias subsequentes ao retorno dela para São Paulo, quando ele ficava mergulhado em uma tristeza muito profunda de dar pena, quando deixava de ser um adolescente saltitante para transformar-se num zumbi, arrastando os pés por onde andava. A semana que antecedia a chegada dela eram os seus melhores momentos. “Logo poderei abraçá-la, afagá-la, me dar a ela, por inteiro e feliz”, era só o que pensava. Corte de cabelo, barba, massagem, manicure e pedicure. Tudo por ela, para ficar completo. “Esta Deusa divina merece o melhor de mim”, estava determinado. Até sua mulher e filhos viam o marido e pai exemplar modificar sua vida e suas atitudes. No início todos pensavam que era pelo seu time do coração que ganhava muito, mas ele ficava feliz até quando o time perdia, ou infeliz quando ganhava. Dependia da presença de Helena, ou da expectativa da sua chegada, ou da tristeza da sua partida. A vida de Pedro resumia-se nisto. Sua mulher, linda e gentil notara sua mudança, mas não desconfiava de nada, ele imaginava, pois nunca lhe cobrara nada ou falara alguma coisa. Mas ela sabia que ele fica feliz e triste, por períodos, e era um marido maravilhoso e pai exemplar, que não ficava na rua bebendo com amigos, frequentando casas de massagem, garotas de programa ou que se envolvesse com alguma outra mulher. Ela acostumou-se com o sexo incrível que fazia com ele durante uma semana em cada mês, quando Pedro parecia insaciável. Que homem gostoso ele era naqueles dias, compensando totalmente o restante do mês, que iniciava triste, tornava-se enfadonho para ficar extraordinário perto do final do mês, quando ele cortava o cabelo, aparava a barba, botava um brilho estranho nos olhos que ficavam com aquela expressão adolescente e selvagem. Valia a pena.

Seu ritual era metódico. Durante aquela semana, a da expectativa, ele nem almoçava, preferindo rodar pela rua da Praia ou nas galerias da Vinte e Quatro de Outubro, examinando as lojas, escolhendo o presente para Helena. Fazia parte do ritual. Mensalmente era assim que acontecia. Preparava-se para ela, sonhava com ela, tinha frio no estômago por causa dela. Os dias iam avançando e ele caminhando e escolhendo, sempre ao meio dia. Um dia antes do vôo Varig 180, ele comprava o presente. Era sempre o mesmo presente, era parte da rotina, transformada em ritual metódico e excêntrico: um calçado! Era sempre um calçado. Um scarpin, uma sandália, uma bota, um tênis - mas, sempre, um calçado. Helena adorava. No primeiro dia em que se conheceram, poltronas 1 e 2 da classe executiva, ela tirou os sapatos para descansar. Seus pés vestidos nas meias de nylon escuras. Pedro mirou-os e elogiou. Muito. Recomendou que ela os pusesse para cima ao chegar ao hotel. Que os mergulhasse numa bacia, em água quente com bastante sal grosso. Se possível os massageasse bastante com hidratantes. Era importante cuidar dos pés. Sem resistir e – como que atraídos por algo inexplicável acabaram por ficar juntos na suíte do Plaza São Rafael. Ele cuidou dos pés dela, como quem cuida de uma criança ou uma jóia muito preciosa. Ela adormeceu com os pés no rosto dele e acordou sem poder mexê-los, tal a força que ele fazia abraçado àquelas riquezas sagradas. Nestes sete anos, todos os meses repetiam o ritual. Ela saía da área do desembarque, ansiosa, ele já a esperava e ficavam no Plaza. Pedro descalçava os pés de Helena e prosseguia seu ritual de adoração iniciado desde que lia aquela carta, informando o dia e a hora da chegada da Divina Deusa. E beijava-os, acariciava-os, massageava-os. Helena desfilava com seus novos pisantes, símbolos emblemáticos daquele segredo, diante de um Pedro hipnotizado, cativo, ajoelhado diante dela. Uma Deusa e seu devoto. Uma Rainha diante de seu súdito mais dedicado. Uma Domme e seu submisso. Que forma estranha de amor. Em sete anos seu ardor cresceu e inovou. Tornaram o sexo em amor. O tesão em paixão. E cada vez mais selvagem. Sempre após o retorno dela ele sonhava com os seus gozos. E como ela gozava. Ele nunca. Somente na esposa. Este era o trato.

Quando longe de Helena e pensando nela, amava a esposa como nunca antes havia sido. Com vigor, com força, ela gozava muito e ele também. Mas sonhava com Helena. Com o tempo, os retornos de Helena a São Paulo já deixavam um Pedro com marcas. Não só no coração, mas de mordidas na bunda, unhas no peito, de cintas nas costas. O pescoço já ficava vermelho pelas amarras improvisadas que o transformavam num cão choroso. E ele chorava também de saudade. Juras de amor. Sua entrega era total. Incondicional. Nunca falaram em casar, em viverem juntos. Nada. Nunca perguntaram sobre a vida de um ao outro. Mas sabiam que eram casados lá fora. O instinto assim informava. E ele amava muito à Helena. E aprendia muito com ela. Aprendia a amar até mesmo a esposa. Com paixão e tesão. E sempre pensando em Helena.

Um dia Helena não veio. Não havia carta. Não havia Helena. No mês seguinte ela também não veio. Passou um ano e ela não mandou cartas e nem veio. Pedro definhou. Emagreceu. A barba cresceu. Doente, com olheiras profundas, e pouco falava. Sua voz vinha fina e de muito longe. Ninguém sabia o que tinha acontecido. Nem os médicos. Ninguém imaginava o que poderia ter acontecido com Pedro e sua estranha doença, que lhe consumia. A quimioterapia levou seus cabelos e sua alegria. Depois, o coração estragado pelo sofrimento, já dava sinais de estar no fim. Seria difícil suportar. Sem comer, sem respirar... faltava Helena.

A esposa desesperada - então, foi a São Paulo e, tendo uma carta muito antiga na mão, amarelada pelo tempo, com o endereço de uma estranha caixa postal, procurou e procurou até que encontrou Helena. Um estranho e inusitado encontro. Helena, que não esquecera de Pedro, também entristecera. Não vinha mais a Porto Alegre. Um ano antes, seu trabalho mudara para outra direção. Era melhor esquecer Pedro. Mas não conseguira. E por isto também estristecera.

Porém a esposa amava Pedro, que era um bom homem, bom marido e bom pai. E trouxe Helena, no dia tal, hora tal, num Varig 180. Trouxe Helena para ressuscitar Pedro que já muito fraco e triste, sorriu. De seus olhos doentes surgiu um brilho intenso que fitou primeiro a esposa e depois Helena. Olhou muito profundamente os olhos dela, que estavam cheios d’água. Antes de partir, Pedro ainda conseguiu dizer para as duas mulheres: obrigado!