23/04/2013

Pés Negros


I

A cena era insólita e muito engraçada. Porém, muito bonita. Ela estava em pé, diante da poltrona, com os pés ligeiramente afastados. Ele estava ajoelhado diante dela, com a cabeça entre seus pés e a testa encostada no chão. Parecia um muçulmano orando. Era o que ele parecia estar fazendo. Mas não orava para nenhum Deus. Estava em adoração e profunda veneração.É certo que estava. Só que diante de um outro tipo de totem. Aliás, uma escultura. Um monumento ao sagrado-profano. Ficou ali, imóvel, por muitos minutos. Balbuciava algumas coisas desconexas, mas que ela parecia entender. Ele parecia suplicar algo. E pedia perdão. Chorou muito. Somente quando ela disse “ok” ele movimento a cabeça e pôs-se a beijar os pés dela.  Primeiro o pé direito. Ele beijou muito e, a cada beijo, repetia sem parar... “obrigado, obrigado, obrigado...” Depois o outro pé. Beijou de forma incontrolável, até que ela o mandou parar, dizendo “chega”. Ele parou e colocou a testa no chão novamente. Entre os pés dela. E ficou imóvel. Foi possível notar que o rosto dele estava vermelho. Ele molhou os pés dela com suas lágrimas. Foi bonito. Parecia lavar os pés de uma Santa com suas próprias lágrimas, em gratidão após o acontecimento de um milagre.

II

Os pés não eram bonitos nem feios. Eram pés comuns, fortes. Pés de gente que trabalha duro, que caminha muito, que tem – nos pés, a força de transporte. Eram pés negros, como ela. O dorso negro, com os dedos bem definidos e marcados por pequenas calosidades nas juntas que os faziam parecer maiores do que realmente eram. As solas clarinhas, quase brancas, rosadas nas bordas quando depositados no chão e sob o peso do corpo. Pés assim não são pés próprios para propagandas de sandálias. Mas eles eram, ali, um pedestal de sustentação de uma obra-prima. Eram a base de um altar sagrado que trazia envolto na pureza da cena o resgate de uma longa história. A alva pele dele era um contraste com a dela. O que se via ali era uma pele branca suplicando algum tipo de perdão, como um acerto de contas no final do resumo de séculos de vilipêndios. Era um monte de carne masculina e branca a pedir algo à uma mulher e negra. As duas extremidades da injusta pirâmide. O insólito era que, agora, o topo estava na base e a base... no topo.

III

Finalmente ela sentou na poltrona. Primeiro cruzou as pernas e, depois, deixou o pé esquerdo no chão, próximo ao rosto dele. O pé direito ela depositou sobre o pescoço dele, que – agora, não mais estava ajoelhado, mas completamente deitado no chão, sempre com a testa voltada para baixo.  Ela secou a umidade das lágrimas dele no dorso dos seus pés negros, nos cabelos dele. Sem muitas palavras ela agora o tinha em completo domínio. Ele estava cativo, em absoluta submissão. Ela era uma Rainha Kushita. Única! Era a Rainha de Sabá que dobrou os joelhos do poderoso Rei Salomão e o fez colocar sua testa no chão entre os pés dela implorando para que ela fizesse verter sangue de suas costas, em noites de luxúria, com intenso látego e açoites.  O olhar dela era distante. Olhava para baixo – num misto de carinho e satisfação, por alguns instantes. E logo olhava ao longe, no horizonte. Como se estivesse ouvindo na voz dos séculos o tamanho da sua glória. Nada se pode comparar a tão completo desprendimento. A paixão e o amor em sintonia são capazes da produzir cenas sem nenhuma vergonha e de grande pureza.

IV

Por vezes, ela pressionava o pescoço dele com o pé, enquanto proferia suas exigências e condições. Ele só conseguia pronunciar “sim, sim, sim...” ou “perdão, perdão, perdão...” Notava-se que o acerto de contas era antigo. Séculos de opressão e desigualdade. O corpo dele sob os pés dela tremia todo. Ele não tinha medo...tinha pavor. Depois de algum tempo, ela permitiu eu ele erguesse a cabeça e fitou-o direto nos olhos. Os olhos dela eram faiscantes, firmes e amedrontadores. O olhar dele era fraco, lacrimejante e servil. Ela o apontou com o dedo enquanto falava. Depois, ele baixou a cabeça e tornou a beijar os pés dela. Religiosamente, com devoção, beijou aqueles poderosos pés negros. Ela fitava ao longe e seu olhar parecia dizer que pouca misericórdia haveria naquele acerto de contas. A piedade mínima seria o tom do futuro naquela nova pirâmide.