19/01/2014

O Pé

Publicado na coluna do David Coimbra, jornal Zero Hora de 19/01/2014, P.Alegre.

Vi que ele olhava para os pés dela. Para um pé, na verdade. O direito.

Olhei-o também. Bom pé. Pé magro, de aparência macia, com dedos em harmoniosa escadinha subindo do mingo frágil ao dedão encorpado mas jamais rombudo.

Isso de pé. Não sou dos fanáticos por pé. Aprecio belos pés, claro, mas os desgraciosos não são eliminatórios para mim. Dizem que a Naomi Campbell tem pés horríveis, e isso não me impede de admirar o trabalho dela. E a Xuxa, há quem garanta que ela só usa botas por vergonha dos pés. Será? Tenho pensado nisso, volta e meia.

De qualquer forma, eu e ele olhávamos agora para o pé direito dela. Estávamos à espera de mesas num restaurantezinho da orla catarinense, eu num canto, eles noutro. Eles formavam um casal de namorados, supus. Ele mais velho, ela na glória de seus vinte e poucos anos. Ela estava numa cadeira mais alta, ele ao lado, num banquinho humilde. Ela havia cruzado as pernas, a direita por cima da esquerda, e por isso seu pé direito balançava com indolência no ar.
Ele, não o namorado, o pé, ele estava calçado com uma sandália baixa, amarrada ao tornozelo. Subia e descia, subia e descia devagar, até que ele, o namorado, não pé, até que ele o colheu.

Com delicadeza, o namorado interrompeu o vôo suave do pé direito da namorada. Tomou-o com as duas mãos, pela sola da sandália e pela base da canela. A namorada, do alto, olhou sem muito interesse. O namorado, então, levou aquele pé aos lábios, como se fosse um cálice de vinho consagrado, e o beijou. Beijou-o profundamente, com os olhos fechados de devoção, aspirando-lhe o perfume, e depois o depositou de volta ao ponto de repouso. O namorado ficou ainda fitando o pé adorado, satisfeito, e ela, a namorada, encheu os pulmões de ar e sorriu, iluminada, sentindo-se uma deusa, sentindo-se uma rainha, e eu, do meu canto, pensei que, das coisas que um homem pode fazer na vida, raras são tão belas, tão poderosas, tão grandiosas do que fazer uma mulher sentir-se uma deusa, uma rainha, porque, naquele momento, ela estará se sentindo, inteira, o que de melhor ela é: uma mulher.

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